No fim do mundo
Desde que o fim do mundo começou. Jackson Jones passou os últimos 15 anos servindo como motorista de ônibus. Mas sua situação está prestes a mudar.
Tudo começou cerca de 15 anos atrás. Lembro que na escola, começou como um boato. Depois com uma simples tosse. Então as pessoas começaram a morrer.
Eu estava no sofá com meus pais enquanto o jornalista avisando sobre o vírus G3H2. Eu ainda me lembro da piada que meu pai soltou quando aquele repórter magro, dos olhos claros e cabelos curtos; levava o microfone até os seus dentes tortos.
— Quem é a porra do Pernalonga perto desse cara! — Ele soltou uma gargalhada alta
Minha mãe, com seu humor sofisticado (ou a falta de qualquer humor) deu um tapa no ombro do meu pai, enquanto ela fitava as cores vibrantes da televisão.
Eu tinha dezenove anos quando aquilo começou.
. . .
Já estava com os meus trinta e quatro anos. Eu acordei, sentindo o frio me socar através das janelas do ônibus. Senti o cheiro do álcool em minhas roupas. Minha cabeça latejava. Minhas costas doíam (é o resultado de tentar dormir num banco de couro). Andei pelo corredor do veículo, notando as velhas cadeiras riscadas com diferentes tipos de cores de canetas e letras diferentes.
Cheguei na maldita janela, que estava aberta. Através dela, fitei a paisagem: a neblina se estendia até o topo das casas e árvores, a vegetação era tomada por um verde escuro que me causavam calafrios; as pistas rachadas me faziam lembrar cada vez mais da vida que eu perdi.
Vi alguém dando um passo adiante. Aquele ser gemia, enquanto se rastejava até o ônibus. O vestido azul claro e a bata com desenhos de corações e café, entregavam que aquela pessoa já trabalhou na cafeteria "Happy bears".
Ela estendia seus braços magros enquanto suas cordas vocais produziam o som de engasgo. Seu corpo era tomado pelas flores, que se fundiam com a sua pele pálida. Seu rosto estava coberto de larvas e os dentes (ou o que restavam deles) apareciam em um buraco em sua bochecha
Aquela mulher poderia ter sido muitas coisas antes de tudo isso.
Aquela mulher tinha sonhos.
Aquela mulher ria de piadas que talvez só ela risse .
Aquela mulher já se apaixonou.
Aquela mulher já não estava mais viva.
Aquela mulher bateu com força no meu ônibus.
Ela socava a lata velha, acho que tentando me pegar. Mas então ouvi um chiado ao fundo, que me fez lembrar da minha cabeça latejando. Olhei para o lado. Era o meu rádio, que ficava próximo ao volante
— Jones? — Chamou a voz do outro lado
Respirei fundo. Atendi
— Jackson Jones, falando — Respondi, com o mínimo de entusiasmo
— Jones, seu merda! — Chiou a voz do outro lado — Todo mundo já está aqui, você está atrasado faz umas meia hora
Esfreguei meus olhos — Pô, desculpa. Encontrei uma garrafa de vodka perto da avenida Eleluku
— Seu bêbado de merda, vem logo! — A voz do outro lado (que até ali eu já havia percebido que pertencia a um homem) gritou, quase estourando o microfone do rádio.
— Chego aí em cinco minutos — Conclui, desligando o rádio
Dei a partida e dirigi em direção ao meu destino, enquanto o motor roncava como um predador adormecido, prestes a despertar. Talvez eu tenha passado por cima daquela coisa, eu nao sei.
Desde a queda do mundo, as pessoas fizeram o melhor que podiam para reconstruir a sociedade. Falho, eu diria, e essa falha estava em todo lugar. Observei as casas, onde a tinta desbotada se rendia à vegetação que engolia lentamente tudo ao redor, como se a própria natureza estivesse zombando do esforço humano.
Meu trabalho não era difícil, eu tinha que levar as pessoas de uma cidade para a outra de ônibus; isso enquanto ouvia os lamentos delas nos bancos em que vomitei por estar bêbado ou me masturbei (pensando em qualquer coisa). Em troca, era recompensado com comida, água e roupas.
Chegando ao lugar, fui recebido por uma multidão. Havia algo perturbadoramente estranho naquelas malas desgastadas que seguravam, como se o tempo tivesse sugado toda a vida delas. Claro, a passagem não era de graça. Para entrar, eles teriam que comprar um bilhete numa bilheteria de uma caixa de madeira apodrecida, coberta por fungos que pareciam se alimentar dos últimos vestígios de dignidade daquele lugar. Cabia apenas uma pessoa lá dentro — alguém que, de preferência, já tivesse perdido o amor à própria vida.
Apertei o botão que abriu a porta do ônibus, e as pessoas começaram a subir. Era um cenário de guerra: idosos magros, quase esqueléticos, com a pele esticada sobre ossos frágeis; adultos com marcas que contavam histórias de brigas, ou algo pior; e as crianças, sujas e feridas, como se o mundo tivesse decidido que nem mesmo elas mereciam uma chance. Quando tive certeza de que todos estavam a bordo, dei a partida. O motor roncou de novo, mas dessa vez, soou mais como um lamento.
. . .
O soprar do vento entrava pelas janelas. A luz abraçante do sol, penetrava ao lado esquerdo. Decidi olhar para o retrovisor interno, para verificar como estava a situação lá atrás.
Num dos bancos próximos a mim (cerca de uma distância de 4 assentos) , notei uma figura intrigante: Um garotinho, entre seus oito e nove anos. Sua pele era bronzeada pelo sol, seus cabelos cacheados desciam até os ombros. Não parecia ser tão magro, diria até que era um corpo normal para a sua idade (o que significa que vivia em um grupo forte ou muito rico em comida). Seu rosto era tomado por algumas manchas de sujeiras. Ele vestia um grande moletom que quase cobria os seus dedinhos que estavam com as pontas das unhas sujas de terra.
Seu sorriso me intrigou. Ele admirava a paisagem com tamanha inocência. Parecia ansioso com tudo que observava, balançando suas pernas para lá e para cá.
Eu acho que primeiro, senti ternura. Até imaginei que quando acabasse a viagem, eu falaria com os pais do garoto que "achei incrível como ele estava tão quietinho, olhando para tudo".
Mas então tive que me manter focado na estrada, atento quando visse a placa com o aviso "Território Branco".
Acontece que, com a queda do mundo, as tensões políticas aumentaram, com cada lado culpando o outro pelo desastre. O que era esquerda e direita em lados políticos, se tornou uma divisão literal. O território branco era a fronteira entre cada facção, era ali que a escória da sociedade se escondia.
. . .
A noite caiu rapidamente. Estacionei o ônibus longe da vegetação. Com o vírus G3H2, a mata não era mais segura. Chamamos de "Mau verde", porque afetava principalmente as flores. Até onde sabíamos (isso antes de cortarem a energia, sobrando apenas os rumores) o pólen era a principal forma de contaminação.
Todos dentro do ônibus estavam exaustos, e aos poucos, foram se ajeitando como podiam, se enrolando em cobertores velhos e sujos. O murmúrio das conversas foi morrendo, substituído pelo silêncio pesado de uma noite sem sonhos.
Lá fora, desceram alguns dos sobreviventes para se aglomerar, tentando aquecer seus corpos antes de se entregarem ao sono. O céu era tomado por estrelas.
Pretendia beber de novo. Peguei o resto da vodka que deixei embaixo do meu banco e desci do ônibus, sem fazer barulho. O soprar da noite batia em meu corpo. Tomei o primeiro gole, sentindo o líquido descer quente na minha garganta. Andei para as costas do ônibus, para ficar sozinho.
Eu só precisava de mim
Foi quando o vi novamente. O garotinho dos cabelos cacheados e sorriso encantador estava ali, no fundo do ônibus, sozinho e de costas para um dos pneus. Apesar da luz tênue que iluminava os nossos arredores, pude ver que ele estava urinando.
Quando me viu, tomou um ar de susto.
— Foi mal! — Levantei as mãos em rendição
— Nunca mais faz isso! — Ele cobriu suas partes. Colocou dentro da calça jeans, larga (costurada por diferentes tipos de remendos) e franziu a testa.
Achei engraçado, não vou mentir
— Beleza, garoto — Escondi o meu riso — Eu só estava andando, não sabia que você estava aqui
— Sabia sim! — Ele estava falando um pouco mais alto (não o suficiente para acordar às pessoas, mas me preocupei que isso ocorresse) — Nunca mais faz isso!
— Tá bom, tá bom. Me desculpe! — Eu estendi a minha mão para ele, como um gesto de gentileza
Ele inclinou sua cabeça, confuso. Me admirou com aqueles olhos verdes que se destacavam na escuridão. Estendeu a mão de volta e apertou.
— Não vai contar para ninguém que eu tava fazendo xixi, né? — Ele perguntou, quase em um cochicho
— E por que eu contaria? — Cruzei os braços.
— Não sei — Sua voz afinou, em dúvida.
— Não vou contar para ninguém — Coloquei a mão no peito, como um juramento
— É... Acho que tudo bem assim! — Ele sorriu, mostrando os dentes, então pude ver que faltavam os dois da frente, deixando-o mais adorável
— Mas e aí, já que agora somos amigos, qual o seu nome? — Me escorei no ônibus. Tomei um gole da minha vodka. Desceu como um abraço, me aquecendo por dentro
— Henry — Ele disse, sorrindo inocentemente enquanto me observava beber — Meu nome é Henry Henderson
Comentários (5)
Baby Boy: Muito bem escrito. Parece ter saído das mãos de um escritor profissional. Gostaria muito de ver as continuações.
Responder↴ • uid:1dxjwbygmgt2fUm escritor qualquer: Q isso mano, fiquei feliz agora KKKKKKK Eu já postei a parte 2 e tô tentando fazer a parte 3 Sou apaixonado pela escrita desde que me conheço por gente :)
• uid:phx11y5ome6xSwiftscarlate: Te recomendo a escrever no wattpad as pessoas desse site não vão saber dá valor a essa história
Responder↴ • uid:830wzenov46ninguém: ótimo começo. ja quero mais.
Responder↴ • uid:g3ipze0m3pUm escritor qualquer: Own, obrigado! Mas gosto de ver os comentários daqui também Apesar de muitos comentários serem extremamente doentes (na minha opinião). Muitos são sinceros, visto que estamos numa espécie de anonimato. E eu gosto da sinceramente. Lembro que postei um conto uma vez em que uma das pessoas que comentava era nitidamente problemática e falava coisas que eu me perguntava até onde o mundo vai parar kkkkkk. Mesmo assim, era bom ver que as pessoas expressavam o que achavam da história
• uid:phx11y5ome6x