#Bissexual #Gay #Teen

Entre Muros e Segredos cap 16

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Timberlake

As vezes brigar cansa e Pedro e Igor resolvem hastear bandeira branca da paz e diálogo do entendimento...

Entre muros e segredos cap 16
Enquanto Pedro estava na parte de baixo imerso em seus arrependimentos, Igor ainda estava no quarto tentando a todo custo tirar logo a sua camisa.
A solução que Igor encontrou foi pegar uma tesoura e cortar a camisa. Então, na frente de Pedro, ele rasgou o tecido, levando a ponta da tesoura até o pescoço. Depois, com a mão esquerda, retirou o que restava da camisa. Quando ficou inteiramente nu naquele quarto, Pedro observou seu corpo. Os quadris de Igor estavam mais roxos que as coxas, e o peito direito parecia ter recebido um soco. De cabeça baixa e com lágrimas ainda escorrendo pelo rosto, Igor entrou no banheiro, puxou o banco e se trancou.
A Pedro restou apenas ficar de cueca e se deitar, esperando que Igor tomasse banho e, enfim, dormisse. Mas Igor demorou. Demorou até demais.
“O que será que aconteceu com esse moleque?”
Pedro se levantou e bateu na porta.
— Igor? Igor, você está bem?
— Estou!
— Você está demorando muito!
— Me deixa, Pedro!
Pedro decidiu esperar. Quando voltava para a cama, o telefone de Igor tocou. “Rafael”.
— Alô.
— Oi, Igor, você não me ligou de volta...
— Não é o Igor.
— Pedro?
— É. O que você quer ligando a essa hora?
— Pedro, chama o Igor...
— Não posso. Ele está tomando banho.
— Você pode pedir pra ele me ligar depois?
— Não. Ele quebrou o braço. Por que você não o deixa em paz?
— Quebrou o braço? Mas...
Pedro desligou antes que Rafael pudesse dizer qualquer outra coisa.
“Mas que bicha intrometida!”.
Voltou para a cama e ligou a televisão. Sempre que o programa entrava no intervalo, ele olhava para a porta do banheiro. O telefone de Igor tocou mais algumas vezes — era Rafael — mas Pedro não atendeu. Pensava no beijo de horas atrás e sentia nojo.
Já eram duas da madrugada, e Igor ainda não tinha saído do chuveiro.
— Igor!
— Pedro, sai. Me deixa, por favor!
— Mas já são duas horas!
— Pedro, morre, vai morre.
— O que você está fazendo?
— Pedro... — Igor voltou a chorar.
— Igor?
Pedro tocava a madeira da porta como se quisesse sentir a pele de Igor, mas era apenas madeira. Voltou para a cama e esperou mais quarenta minutos. Seu corpo não resistiu, e ele acabou adormecendo.
Igor, enfim, saiu do banho e caminhou nu até a varanda, onde pegou a toalha. Vestiu uma cueca e se deitou. Olhou o telefone e viu chamadas não atendidas.
“Ligo ou não ligo?”.
Não foi preciso, pois Rafael refez a ligação.
— Rafa?
— Igor?
— Oi.
— Você quebrou o braço?
— Quebrei. Como você sabe?
— Pedro me contou. Mas não disse muita coisa.
— É claro que não disse. A culpa de eu ter quebrado é dele.
— Como é?
Na manhã seguinte, Igor acordou cedo e se arrumou para ir para casa. Pedro não o viu sair. Seu sono estava tão pesado que nem percebeu o esforço do garoto em se vestir sozinho.
Em casa, Igor ouviu mais broncas do pai e enfrentou o silêncio apático da mãe. Resolveu que não jantaria ali, mas se livrar de sua antiga casa foi difícil.
Pedro, por sua vez, recebeu uma visita não muito agradável, mas que insistia em lhe perseguir.
— Alô?
— Pedrinho?
— Oi, Tati.
— Estou aqui no portão.
— Aqui no casarão?
— Sim, aqui embaixo.
— Mas... O que você está fazendo aqui?
— Vim te ver, oras. Ontem estávamos todos tão tensos... Você já está vindo abrir o portão pra mim?
— Sim, espere.
— Vim para almoçarmos juntos.
Pedro finalmente destrancou a porta de entrada, e ambos desligaram os telefones. Caminhou até o portão e o abriu.
— Oi, gatinho. — Tatiana o beijou no rosto.
— Oi.
— Almoçamos aqui ou fora?
— Que tal fora? Eu não sei cozinhar e, até conseguirmos preparar algo, vamos morrer de fome.
— Certo.
— Deixa eu pôr uma camiseta.
— Por que não almoçamos na praia? Assim você não precisa pôr camiseta nenhuma.
— Certo.
— Vamos andando?
— Sim.
O casal escolheu uma barraca que servia almoço, além dos tradicionais petiscos de frutos do mar. Tiveram uma tarde tranquila, mas, ainda assim, Pedro não estava satisfeito com a insistência de Tatiana em construir uma relação. Ele sabia que aquilo era infrutífero.
— E esse fim de semana? Será que podemos dormir juntos de novo?
— Tati, eu gosto muito de você, mas... preciso ser sincero. Não posso continuar ficando com você. Pelo menos não desse jeito.
— Mas por quê?
— É o Igor.
— O Igor?
Igor era, de fato, responsável pelo desinteresse de Pedro em Tatiana. Mas o que nem ele nem ela sabiam era que Igor tinha muito mais a ver com essa situação do que eles imaginavam. Inclusive Pedro, que não fazia ideia de que a transa que tiveram despertou nele não apenas um novo conhecimento sobre sua sexualidade, mas também uma reflexão sobre como vinha conduzindo sua vida até então. Ele só não sabia disso ainda.
Sua mudez, seu medo de se envolver com qualquer coisa, sua imagem retraída e os inúmeros problemas que surgiam em sua personalidade – tudo era fruto de sua sexualidade desconhecida, que recaía sobre todos os aspectos de sua vida pessoal e social.
Se aquele interesse repentino pelo corpo de Igor não tivesse surgido, sabe-se lá quando Pedro se descobriria. Talvez nunca. Restava saber em que momento de sua vida tudo havia mudado. Como algo tão determinante como a sexualidade simplesmente era – ou havia sido – desconhecido? Será que Pedro, em algum momento de sua vida, suspeitou que algo diferente acontecia com seu corpo e sua mente? Bem, não era algo com que estivesse preocupado, pelo menos não agora.
— O que o Igor tem a ver com isso?
Pedro tomava água de coco enquanto sugava pelo canudo palavras para compor sua resposta.
— Tati, você sabe que o Igor é viadinho, não sabe?
— Sei... E?
— E que eu já te disse o quanto ele é falso, não disse?
— Pedrinho, diga logo o que você quer dizer com tudo isso.
— Igor não gostou quando você dormiu lá.
— Porque a gente o incomodou. Eu imaginei...
— Não. Quer dizer, por isso também, mas não apenas isso. Igor é... como eu posso dizer? Bem, Igor é apaixonado por mim.
— O quê? — Tatiana riu. — Mas isso é ridículo!
— Pois é, eu que o diga.
— Mas onde você quer chegar?
— Eu não posso mais levar você ao casarão e tenho que tomar cuidado com qualquer outra garota com quem eu fique.
— Mas o que o Igor pode fazer contra isso? Nada! E você vai deixar de namorar porque ele não quer?
— Veja bem, é complicado. Ele me ameaçou indiretamente. Veio com um papo de que meu pai não ia gostar se descobrisse que eu ando trazendo “moças” pra dormir no casarão. Disse assim, como quem não quer nada, que uma das minhas obrigações é cuidar dele...
— Cuidar dele? — perguntou, revoltada.
— É, assim como meu pai pediu. Enfim, ele disse que meu pai não ia ficar feliz se descobrisse que eu ando usando o casarão para outras coisas.
— Mas, Pedro, seu pai não pode te obrigar a não namorar!
— Sim, isso se eu realmente não estiver desfocado do casarão. Entende? Meu pai pode achar que estou priorizando o namoro em vez das minhas obrigações com o hotel.
— Pedro, você explica para ele que...
— Aí é que está. Quando ele vier me chamar a atenção, Igor já terá enchido a cabeça dele.
Pedro poderia mentir à vontade, pois seu comportamento enquanto mentia e enquanto dizia a verdade era exatamente o mesmo. Seu tom de voz não se alterava, e suas expressões faciais não destoavam de sua aparência normal. Além do mais, Tatiana não conhecia o Pedro real nem o Pedro falso. E mesmo que conhecesse, nem o próprio Pedro se conhecia mais.
— Mas então o que faremos? Vamos deixar assim? Vamos deixar que esse viadinho faça o que bem entender? Além do mais, ele pode te afastar de todas as mulheres do mundo, e você nunca ficará com ele, afinal, você é homem!
— Isso, eu sou homem. Mas, para ele, isso não importa. O que eu pretendo fazer é dar um tempo. Quero terminar de vender os pisos e, quando isso acabar, estarei livre de tudo, pois, por mais acusações que Igor tenha contra mim, ele não terá mais armas para me deter, entende?
— E quanto tempo isso vai demorar?
— Bem, o estoque ainda está cheio. Não sei ao certo. Pode durar meses, pode até mesmo ultrapassar o prazo de entrega do hotel.
— Mas isso é muito tempo!
— Eu sei, e lamento muito por isso.
— Mas... e a gente?
Mesmo Pedro encenando um papel, ele não fazia diferente de tantos outros homossexuais que acreditam que, ao causarem uma separação entre "tipos" de gays, enfim ganharão algum respeito. A questão é que Pedro, mesmo sem se reconhecer como homossexual, já tinha incutido em sua mente que, agindo assim, poderia se livrar da desconfiança das pessoas.
E quantos outros gays não agem e pensam da mesma forma? Aqueles que, por terem a sorte de passarem despercebidos, humilham aqueles que não conseguem esconder sua verdadeira intimidade? Uma coisa é eleger um tipo comportamental de parceiro para se relacionar e sentir atração, outra, bem diferente, é acreditar que esse tipo em especial é a única maneira "aceitável" de expressar a sexualidade.
E não é justamente essa a função da homofobia? Desarticular e desunir os gays? E não é assim que os próprios gays agem? E não é exatamente isso que alguns querem? Trata-se de convivência social — não importa a raça, etnia, religião, cultura, gênero ou sexualidade. Todos querem, de alguma forma, depreciar o outro, pois só assim podem se destacar. Afinal, se não fosse assim, todos seriam (seríamos) iguais.
Mas a igualdade não funciona. A igualdade, de fato, não existe, e a ideia de ser igual ao próximo é perigosa. Até isso os homossexuais já sabem. Até isso Pedro já sabe.
Quando Igor retornou ao casarão — pois não dormiria em sua casa, tampouco jantaria lá —, Pedro e Tatiana já haviam voltado do almoço na praia e já tinham transado.
Igor atravessava o jardim quando Tatiana chegou à porta principal. Pedro ainda descia as escadas e abotoava o calção. Quando Igor subiu os degraus da entrada, ficou face a face com a garota.
— Oi, Tati!
— Oi, Igor — disse em um tom baixo, porém agressivo.
— Tudo bem?
— Tudo péssimo, Igor.
— O que houve? Onde está o Pedro?
— Pedro e eu acabamos de transar, e eu devo confessar que amante como ele eu nunca tive... e nem você terá!
Igor olhou para Tatiana com estranhamento e até achou aquela afirmação um pouco cômica.
— Ok. Que bom para você.
— Já você, viadinho escroto, nunca saberá o que é isso.
— Êpa, acho que você foi um pouco grosseira...
— Só um pouco? Que pena. Então deixa eu ser mais grosseira e mais direta: Pedro nunca será seu. E sabe por quê? Porque ele é homem. Ele não é bichinha como você. Ele já me contou que você está apaixonado por ele e que está fazendo o inferno com o pai dele. Eu só aviso uma coisa, Igor, quando tudo isso acabar, eu posso não ter o Pedro para mim, mas você também nunca terá, sua bichinha nojenta.
Igor baixou a cabeça e começou a entender o motivo de todas aquelas acusações. Calou-se e decidiu apenas ouvir.
— Quando seu pai souber o filho que tem, você vai aprender a ser homem de verdade. E não vai tardar, Igor, seu pai logo vai descobrir. É questão de tempo.
Pedro escutava tudo da escada e, encostado à parede, pensou se deveria se aproximar. Temia que Igor o desmentisse. Mas também sentiu aflição pela situação em que o garoto se encontrava, provavelmente sem entender nada, levando desaforos que não merecia. Por fim, não restou outra alternativa, a não ser tentar despachar Tatiana o mais rápido possível.
— Oi... — disse Pedro, olhando para Igor.
— Eu não me aguentei, Pedro, e desabafei tudo.
— Tudo bem, Tati. Isso já não era segredo. — discursava enquanto olhava para Igor. — Agora vamos, por favor.
— Sim. E você, viadinho, vê se acorda. Bicha será sempre bicha!
— Vamos!
Pedro empurrou Tatiana levemente para o jardim e a arrastou para o portão.
— Pedrinho, me perdoa mesmo por isso, mas eu não aguentei. Quando eu o vi...
— Tudo bem, Tati, eu entendo. Eu até ouvi tudo o que você disse e esperei você terminar. Não se preocupe. Eu só não quero que você conte que Igor é gay para ninguém.
— Eu nem preciso contar. Basta olhar, e todo mundo percebe.
— Eu sei, mas falo principalmente para o pai dele.
— Não sou tão baixa. Mas não seria má ideia. O pai dele deveria, sim, saber.
— Não! Deixa... Isso vai trazer muito mais problemas. Se a sociedade entre nossos pais se desfizer, meu pai morre do coração. É muita grana investida.
— Eu entendo...
— Por isso, gostaria de pedir que você não comentasse nada com ninguém. Já me arrisquei muito contando a você.
— Você me contou porque confia em mim, não é, Pedrinho?
— Isso. Eu confio em você!
— Eu guardarei. Será nosso segredo.
— Obrigado.
— Até mais.
— Até.
Quando Tatiana dobrou a esquina, o pior, para Pedro, estava por vir. Teria que enfrentar Igor e explicar o que aconteceu. Mas, se algum dia Pedro não tinha vergonha de intimidá-lo, esse dia não existia mais. Foi ontem! Trancou o portão e tentou buscar forças para entrar, subir as escadas e encará-lo. Quando chegou ao quarto, Igor estava em sua cama, sentado, arrumando a tipóia. Pedro se sentia como uma criança que quebrou um vaso e agora precisava ouvir da mãe que era uma decepção, uma criança má. Igor se antecipou, contudo.
— Eu sempre achei a Tatiana muito engraçada. Hoje ela mostrou o porquê de eu achar isso.
Pedro ainda estava na porta, de pé.
— Igor, eu inventei uma história...
— Disse que eu estava apaixonado por você, que eu estava implicando com seu namoro com ela e que por isso seria melhor vocês darem um tempo. Acertei?
— É... Foi isso.
— Tudo bem.
— Tudo?
— Você não é o primeiro a fazer isso comigo, Pedro.
— Como assim? Não entendi.
— Enfim, esqueça. Pense o seguinte: é mais um débito que você tem comigo. Venda os pisos. Só isso!
Igor estava estranhamente calmo naquele fim de tarde. Paciente e sorridente. Mas seus sorrisos eram mórbidos e conformados. Parecia que havia perdido as esperanças de poder viver a sua vida. Estava ele apenas navegando sem remos, deixando a correnteza o conduzir.
— Desculpa pelas coisas que ela disse.
— Já ouvi coisas piores, de bocas piores.
— Eu não encontrei outra saída. Na hora me veio...
— Pedro. Vamos fazer o seguinte. Chegamos a um ponto em que nos cansou toda essa briga entre nós. Eu estou cansado e você também. Eu nem tenho fôlego mais para criar situações ou inventar coisas para você me deixar em paz. Então por que a gente de fato não cria essa paz?
— O que você quer dizer?
— Já me convenci de que não adianta eu planejar a minha vida. Isso não vai dar certo. Hoje eu olho para mim há dez anos à frente e me vejo aqui, nesse mesmo casarão, dizendo: “Seu quarto é o duzentos e dois. Tenha uma boa estadia!”. E você estará na sala da gerência, seja lá onde ela será feita, com uma calculadora na mão e um monte de papéis de contas e outras burocracias.
— Então você já desistiu de abandonar o casarão? Vai ser meu sócio de verdade?
— Sim. Mas com um pequeno detalhe: eu não serei feliz.
Restava saber se a infelicidade de Igor seria também a de Pedro. Para Pedro, aquele era o pior detalhe. Encontravam-se agora em uma nova situação, muito mais estranha que a anterior. Tudo parecia bem, mas era visível que não estava. Pedro e Igor não eram mais inimigos. Eles simplesmente não eram nada um do outro. Então o que eram? Com certeza, essa nova fase era ainda mais corrosiva que a anterior. Igor estava desmotivado e distante, Pedro estava abandonado e confuso. E ainda era segunda-feira. No dia seguinte, os pedreiros já iniciavam a reforma no lado direito do casarão. Igor acordou cedo e fez o café. Logo em seguida, começou a fazer o almoço. Quando Pedro acordou, por volta das nove horas, viu que seu companheiro de quarto não estava na cama. Fazia um pouco de frio naquela manhã, então ele teve preguiça de levantar. Olhou para o lado novamente e enxergou um céu acinzentado, da mesma cor do lençol de Igor. Mesmo com a varanda aberta, o quarto estava pouco iluminado, pois o sol havia se escondido.
Pedro se levantou, pegou sua toalha e tomou banho. Ao terminar de se enxugar, percebeu que usou a toalha errada. Notou pelo cheiro. Pertencia, então, a Igor. Em outros tempos, sentiria nojo por isso, mas apenas pensou em deixar a toalha no mesmo lugar e torceu para que Igor não percebesse e que não se chateasse ainda mais. Ao descer as escadas, sentiu o cheiro de feijão cozinhando e estranhou pela hora. Quando chegou à cozinha – que estava novamente imunda – Igor cozinhava quatro panelas de uma só vez e tinha um pano de prato pendurado em seu ombro. Pedro franziu a testa e parou na porta. Um pedreiro passou por ele, pedindo-lhe passagem, enquanto derramava pequenas porções de água do balde que carregava, formando mais lama no chão da cozinha.
Igor se zangou um pouco pelo barulho e pela sujeira e olhou para a porta, encontrando Pedro.
— Bom dia!
— Oi.
— Não está cedo para cozinhar?
— Quanto antes, melhor.
— Acordou com fome, hein?
— Não vai comer aqui?
— Você está cozinhando para nós?
— Sim.
— Ah, tá...
Um sorriso brotou instantaneamente nos lábios de Pedro. Foi uma reação incontrolável. Ele seguiu para a pia e encontrou a cafeteira meio cheia.
— Posso tomar do café também?
— Sim.
— Não quer ajuda para mexer as panelas? Você está com o braço engessado...
— Não precisa.
Os pedreiros já não incomodavam mais a Pedro. Poderia estar nu naquele dia nebuloso e não sentiria frio. As palavras de Igor pareciam acolhedoras. Mas não poderia abusar disso, sabia que os braços de Igor não estavam assim tão abertos para ele – ainda mais porque um deles estava quebrado. A diferença agora é que ele não escondia mais uma adaga em seu bolso de trás. Mas uma outra coisa boa disso tudo, e que ninguém havia ainda percebido, é que Pedro estava muito mais falante. Mesmo breve, nas poucas conversas que mantinha com Igor, o rapaz sempre dava um jeito de estender as frases. Obviamente, isso só se referia a Igor e não aos estranhos. Ou seja, Igor já não era mais seu rival, tampouco um estranho.
Na hora do almoço, Pedro preparou seu prato e subiu para comer no quarto, pois seria impossível fazer isso na cozinha. Igor já havia comido e tomava banho. Quando Pedro já estava na metade de sua refeição, o menino saiu do banheiro vestindo uma cueca e enxugando o cabelo com a toalha, colocando-a na varanda para secar. Mas, antes de pendurá-la, sentiu um cheiro diferente nela, embora não tenha estranhado a ponto de se preocupar com isso. Abandonou-a e fechou a porta da varanda devido ao frio, deixando o quarto ainda mais escuro. Atravessou o cômodo e acendeu a luz. Pedro observava tudo com a boca cheia de comida, sentado em sua cama. Era uma evolução que ele não sentisse vergonha de estar comendo algo preparado por Igor; ao contrário, sentia que até deveria agradecê-lo. Pedro só não estava mais feliz porque Igor não estava feliz.
O menino procurou em sua mala o secador e o plugou na tomada. Então, olhando para um pequeno espelho em cima da cômoda, começou a secar o cabelo e a penteá-lo. Pedro olhava de longe e, pela primeira vez, achou a cena engraçada. Igor não tinha um porte efeminado, embora usasse gírias e às vezes se comportasse efeminadamente. Mas era um homem usando um secador de cabelo, isso não dava para negar. Vários sorrisinhos surgiram nos lábios de Pedro no início daquele dia. Igor começou a fazer um topete nas mechas da frente, ora penteando, ora ajeitando com a mão esquerda. Pedro, mesmo com o barulho da obra e o motor do secador, pôde ouvir passos subindo as escadas.
— Igor, acho que vem alguém!
O garoto então foi até a porta e, ao ver quem subia, ignorou a possibilidade de ser visto com o secador e voltou a usá-lo. Pedro estranhou completamente o desinteresse de Igor em ser descoberto.
— Filho, eu pedi a um dos pedreiros para comprar... Igor?
— Oi, tio?
— Você usa secador?
— Uso.
— Por isso o topete é tão impecável. Era com você mesmo que eu queria falar.
— Pode dizer.
— Eu pedi que comprassem outro botijão de gás para o fogão.
— Ah, obrigado, tio.
— Eu trouxe aquele porque estava lá em casa sem usar... Mas não sabia que ele já estava quase acabando.
— Sem problemas, tio.
— Aliás, ainda tem muita comida na cozinha. Vocês não estão comendo?
— Não, é que a gente às vezes pede muita coisa pelo delivery. Não é, Pedro?
— É, é isso.
— Por um segundo eu cheguei a pensar que vocês não estivessem cozinhando, que só fizeram hoje porque eu vim.
— Imagina, tio.
Foi quando Pedro percebeu que Igor cozinhando para ele de novo era mais uma ilusão. Não era por ele, mas sim por Silveira.
— Vocês vão à aula juntos hoje?
— Não. Eu vou com um amigo. Ele vai passar com a mãe para irmos juntos.
Mais uma decepção para Pedro.
— Bom, eu vou descer e almoçar...
— É melhor o senhor...
— Não me chame de “senhor”, Grande!
— É melhor você comer aqui no quarto.
— É melhor. Vou fazer meu prato.
Nenhum sorriso surgiu mais nos lábios de Pedro durante o resto do dia. Terminou seu almoço e esperou o tempo passar para poder se arrumar. Igor já se vestia, mas demorou a pôr a roupa devido ao braço paralisado. Começou pela calça. Sentou na cama e, puxando uma perna por vez, vestiu-se. Com muita dificuldade, calçou as meias e sapatos, e não um tênis, pois não tinha cadarço e não queria pedir o auxílio de ninguém para se vestir. Pedro, porém, assistia a tudo com muita aflição. Queria ajudá-lo, mas não teve coragem de se oferecer. Igor, quase pronto, restava-lhe então a camisa. Como faria?
Passou a gola pelo pescoço e, esticando o braço esquerdo, conseguiu vestir uma das mangas. Faltava agora a manga direita. Com a mão esquerda, começou a vestir o braço direito, mas o fato de o braço esquerdo já estar vestido dificultou o processo. Pedro observava e pensava que ele poderia se machucar ou prejudicar a recuperação da fratura. “Será que eu ofereço ajuda?”. Igor começou então a se desvestir e iniciou pela mão direita. Mas a manga simplesmente não alcançava o braço.
— Igor, eu acho que...
— Espera, só um minuto!
Igor saiu do quarto e desceu as escadas, deixando Pedro no quarto. Dois minutos depois, ao voltar, estava com a camisa vestida.
— O que você queria me dizer?
— Nada...
O telefone de Igor, que estava em cima da cama, tocou.
— Oi, Rafa.
— Já estou aqui embaixo.
— Tá, já estou descendo. Deixa eu só pegar minhas coisas.
— Quero ver o seu gesso.
— Ah, você vai ser o primeiro a desenhar nele.
— E já pode?
— Não sei, acho que sim. Até mais.
Desceu as escadas sem se despedir do companheiro de quarto e sumiu. Agora, Pedro entendia o que significava a tristeza de Igor ao permanecer no casarão: era se conformar em viver uma vida que não era sua, acomodar-se a ter o que lhe davam e não buscar os subsídios que lhe permitiriam viver a vida que desejava. Não importava mais para Igor se teria que cozinhar para Pedro ou não, não importava se teria que dividir o quarto e perder sua privacidade, não se importava se essa convivência seria agradável ou não. Igor já não se importava, estava apenas tentando viver melhor dentro das suas possibilidades. Não era o fim do mundo. Por isso Igor agia dessa forma. Tratava-se de abandonar seus próprios sonhos para viver o sonho dos outros.
Na faculdade, Rafael e Igor não se desgrudaram um só minuto. Riram juntos e compartilharam as angústias. Algumas eram maiores que as outras.
— Então o almoço com seus pais...
— Pior impossível. Meu pai ficou o dia todo falando mal de mim para minha mãe, como se ele estivesse me apresentando para ela. Como se ela não me conhecesse. E então, o que seria um dos dias mais libertadores da minha vida, se tornou o pior deles.
— Mais libertadores?
— Eu contei pra minha mãe.
— Contou? – perguntou alarmado.
— Sim.
— Me conta tudo, com detalhes!
— Depois que almoçamos e depois que meu pai fez o inferno, ele saiu. Foi pra pousada, disse que tinha que esfriar a cabeça. Bem, ele poderia morrer logo, não é? Mas enfim... Minha mãe e eu ficamos na cozinha. Ela ficou lavando e enxugando os pratos. Geralmente eu os enxugo enquanto ela os lava, mas não deu...
— Que lindinhos!
— É, – riram um pouco – mas não seria muito legal o gesso derretendo em cima dos pratos. Enfim... Eu percebi que ela estava um pouco triste e ai eu pensei que fosse por minha causa. Não que eu tivesse causado a tristeza dela, mas sim pela situação que meu pai causou.
— Entendo.
— Então, enquanto eu estava ali sentado, eu pensei “Oportunidade boa como essa não vai surgir assim tão fácil”, e ai eu contei e...
— Não, Igor. “Ai eu contei” não. Me diga como foi que você contou. Quero detalhes.
— Ta bom. Eu estava ali sentado na mesa da cozinha e ela de costas. Então eu disse “mãe!” e ela se virou. Ai eu comecei a chorar... Não chorar de fazer drama, mas caíram lágrimas, ai ela começou a se preocupar, fechou a torneira e se ajoelhou na minha frente, se apoiando nos meus joelhos.
Rafael e Igor começaram então a lacrimejar juntos. Os amigos estavam sentados em um banco, debaixo de uma amendoeira e afastados de todo o grupo.
— Então eu disse “Mãe, eu sei que eu não sou o filho perfeito...”, e ela me interrompeu. “Que história é essa? Você é o filho mais perfeito dessa casa!”.
— Ai, não acredito que sua mãe fez piadinha justo nessa hora!
— É, não é uma fofa?
— Sim, sim, sim, muito fofa. Mais que fofa!
— Então eu continuei “é que eu queria te contar uma coisa sobre mim, sobre a minha diferença. Mãe eu...” ai nessa hora eu não aguentei e a abracei, mas só com o braço esquerdo, claro. E ai eu aproveitei que ela não estava me olhando nos olhos e disparei “Mãe, eu sou gay!”.
— Ai, ai, ai, ai... E ai?
— Ai ela me abraçou mais forte ainda e disse “mãe sabe de tudo, Igor. Eu não seria a mãe mais perfeita dessa casa se não soubesse disso!”. Ai a gente se desmanchou em lágrimas.
— Ai, se desmancharam igual a mim agora. Minha camisa nova agora ta toda molhada. Olha aí!
— Bobão!
— E ai? Conta o resto.
— E ai que ela puxou uma cadeira e se sentou na minha frente e começamos a conversar. Ela disse que sempre desconfiou e que não gostou da ideia no inicio. Normal, né? Mas ai depois ela percebeu que nada daquilo anulava as minhas boas notas na escola e que não significava que eu era promiscuo, ou que eu me envolveria com drogas. Ela disse que depois até gostou, porque eu a ajudava escolher as roupas nas lojas.
— Ah, claro. Como a minha mãe. Ela começou a perguntar que roupa caía bem nela no meio da loja, ai o meu pai “Miranda, ele é homem, não vai entender dessas coisas”, e ela “Mas ele é viado. Se eu não perguntar pra ele, não vai ter graça nenhuma ter um filho viado!”.
Então, em meio às lágrimas, começaram a gargalhar.
— Mas a história de hoje é você. Continue.
— Certo. Então ela disse que já que aquele dia era o dia das confissões, que ela me faria uma também. Ela disse que vai se separar do meu pai.
— Sério? Gente, é a melhor coisa que sua mãe vai fazer na vida!
— Foi exatamente o que eu disse a ela. Com essas mesmas palavras. Mas não era tudo. Ela disse que estava apenas esperando o resultado de um exame que ela tinha feito e que, se desse positivo, ela não teria dúvidas.
— Mas que exame?
— De mama. Ela disse que encontrou um caroço pequeno entre o peito e a axila.
— Ai, Igor...
— É.
— Mas vai dar tudo certo.
— Espero que dê mesmo, porque o resultado foi positivo para câncer.
— Como assim? Me perdi.
— É que ontem foi justamente o dia em que o exame sairia. Então fomos juntos pegar e deu que ela está com câncer.
— Igor, sinto tanto...
— Então, na mesma hora, ela disse que eu deveria voltar para o casarão, porque ela queria conversar com meu pai logo de manhã e não queria que eu estivesse em casa.
— Ai. Acho que você deveria ter ficado em casa...
— Não. Não se preocupe, meu pai não é maluco. Pelo menos não tanto. Ele não vai fazer nada com a minha mãe. Até porque, quando ela contar do câncer, o que ele vai fazer? Ele vai achar até bom, pois estará se livrando de um peso... Sei lá. Meu pai não é assim tão ruim quanto eu o descrevo, ele só é extremamente homofóbico. E quanto ao câncer... Bem, foi descoberto no inicio. Ela só vai sofrer um pouco com a quimioterapia e talvez radioterapia. E quando ela se separar, vai morar com minha tia e minha avó, mãe dela.
— E você com tudo isso?
— Minha mãe é tudo pra mim. Meus sonhos não são nada perto dela.
— O que isso quer dizer?
— Que eu vou ficar no casarão, vou continuar no mesmo lugar. Pois é seguro e é um futuro garantido. Agora eu quem tenho que cuidar dela. Quando chegar a hora, eu serei a mãe dela.
— Que lindo. Então vamos às compras hoje mesmo. Temos que comprar uns modelitos que combinem com seu tipo físico e que realcem a sua sobriedade enquanto uma mulher de família e mãe.
— Tonto!
À noite, no casarão. Pedro e Igor pareciam ainda mais distantes, mesmo que uma paz figurativa tenha sido estabelecida. Agora sim eles eram verdadeiros estranhos, pois já não sabiam mais nada um do outro, além de também saberem pouco sobre si mesmos. Se ainda fossem rivais, ao menos conheceriam o outro, ao menos o lado ruim. Mas já não sabiam e não se importavam. Pedro até se importava, mas em conhecer o lado bom de seu ex-inimigo. Tentou dar início a um relacionamento mais amistoso. Mas um dia Igor também quis isso, só que Pedro não apenas não queria como destruía todas as tentativas. Em sua cabeça, sentiu culpa por todas as vezes que Igor lhe sorriu e ele simplesmente franziu a testa e virou a face. Dormiram então.

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